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  • Foto do escritorDébora de Mello

É preciso consciência e uma dose saudável de drama para confissão. Ideias sobre I Confess (1953)

Atualizado: 15 de jul. de 2021


E não é a vivência do paradoxo a essência do horror?


O Inquietante, o estranho, o estrangeiro, o duplo hospedado no fundo das psiques como expôs Sigmund Freud no âmbito da medicina e muitos poetas e filósofos antes e após ele. A confissão é um desses momentos onde esse estranho no ninho se mostra. Séries e filmes policiais ajudam-nos a compreender a desmedida tensão e resistências envolvidas durante uma confissão. O jogo entabulado pelos investigadores leva o depoente a reviver o ápice do momento dramático, que em nós humanos é sempre o ponto do conflito, da contradição, do medo, do desamparo, da vergonha, da loucura, do paradoxo, do crime. Nesse exato momento o não carrega o sim, a verdade (sempre relativa) é golfada e ganha um lugar na arena dos assuntos humanos, podendo enfim receber o devido tratamento.

Hitchcock é um mestre na linguagem cinematográfica e nos temas paradoxais da existência e do drama humano.

A Tortura do Silêncio (título no Brasil) é um suspense alcançado já na maturidade de Alfred Hitchcock, contava 63 anos. Foi seu quadragésimo segundo filme.

A trama trata das contradições e dos efeitos colaterais desde a busca pela confissão até o momento catártico. Quantas mentiras e omissões escondem uma confissão?


É no seio da Igreja Católica, símbolo máximo da religião cristã, que Hitchcock situa sua trama porque é precisamente esta religião que melhor assimila a ambivalência e a contradição de pensamentos e sentimentos dos seres humanos. Não sem propósito Sigmund Freud chamou a neurose obsessiva de uma religião particular, e a religião como a neurose obsessiva da civilização.

No filme o padre Logan (Montgomery Clift) caminha pelas estreitas margens de sua inviolabilidade do sigilo sacramental quando é acusado do assassinato de um afortunado membro de sua paróquia. O verdadeiro assassino foi Otto (O.E. Hasse), um pobre imigrante alemão desesperado por dinheiro, e o padre Logan sabe disso porque Otto o confessou a ele mas, não pode compartilhar essas provas com a polícia, mesmo que isso signifique a vida de algumas pessoas. Sob a batina, sob a veste religiosa se escondem muitos dos mais hediondos crimes pessoais e nacionais.

Numa camada seguinte assistimos ao drama do imigrante alemão, encurralado, sem condição de oferecer a si e a sua esposa uma vida melhor, sendo obrigado a assistir diariamente a sobrecarregada rotina de sua esposa que lhe sugava toda energia e saúde. Enquanto o clero gozava de comodidades e facilidades de uma pousada boutique, com requintes low profile, um luxo simples de tempo ocioso e os prazeres da boa comida e da boa bebida. Injustiça.


Como chegou a suspeito o Padre Logan? Então, nos deparamos, com outra camada, o assassino no momento do crime vestia uma batina que surrupiara, ironicamente, do cesto de roupa sujas a cargo de sua esposa na lavanderia da igreja com o intuito de disfarçar-se. Quem de fato é o culpado? A injustiça, a igreja, os dogmas, Logan ou o verdadeiro assassino, o imigrante?

Acontece que padre Logan também havia cometido um crime perante a Igreja, cometeu adultério um pouco antes de ingressar para a ordem. E ainda outro crime poderíamos atribuir ao jovem e angelical Logan: o abandono de seu amor. A troca do amor de uma mulher pelo amor a deus. Esses segredos Logan carrega sob a batina.

A polícia nos filmes de Hitchcock é sempre representada como astuta e estúpida ao mesmo tempo. E assim o bobo policial conclui simploriamente que se Padre Logan tem algo a esconder, esse algo só pode ser o assassinato do rico sovina. Esse rolo todo custará a vida dos elos mais fracos: a vida dos trabalhadores da paróquia que sonhavam com um tico da mordomia que assistiam diariamente. A humilhação da mulher casada que cometeu adultério com o aspirante padre Logan.


A face linda, doce e serena, e um tanto que palerma do padre Logan (Montgomery Clift)

é o próprio horror no devido contexto. A covardia intrínseca da alma sob o uniforme do exército, e da batina se apresenta aos olhos mais ingênuos como símbolo de força e coragem. Hitchcock, nesse clássico consagrado, mantém em cena e em nossos ossos o terror vivenciado à medida que se aproxima da intimidade e das contradições dos personagens. O gênero artístico do horror é em si mesmo um interessante exemplo do fascínio como condição intrínseca e nuclear, geradora de emoções opostas e combinadas. Uma experiência mística (o horror) para o intelecto humano tão necessitado de ordem, categorias e classificações.

A pergunta que ficamos fazendo por todo o filme é por que o padre Logan não assume o que deseja? Por que não larga a batina e se junta a mulher amada de sua vida? Por que não a poupa da humilhação a qual lhe sugere em nome da honra à batina? Por que não testemunha a favor do assassino por acidente, e ajuda esse casal? A resposta é fácil: justamente sua escolha pelo dogma expressa os desejos e instintos mais tórridos de Logan. O padreco vai da vida militar à vida ministerial.

Escolha neurótica? Certamente. A batina obsessiva com sua lista de tarefas e rituais versus os prazeres camuflados. Debaixo de estereótipos, ortodoxais e uniformes variados há sempre um traço rígido a consumir a vida humana e suas constantes geração de vida, mudanças, renovações e criações. Na religião, poucas mudanças são aceitas. É como se alguém, divino mesmo, pudesse olhar lá da torre do futuro, bem acima dos homens e soubesse que aquilo que se arranjou lá no passado distante é a melhor, ou única opção. O futuro? Ah! Esse é sempre trágico catastrófico e atemorizante. Com a criação de um Deus que tudo vê e instituições poderosas o ser humano deu cabo do Acaso. Pela Providência submetemos, alucinadamente, a contingência. A religião é um grande exemplo, entretanto, tradições perpetuadas de todos os tipos possuem o mesmo mecanismo. Todo conservadorismo, sem reformas, portanto, extremista, abriga-se no ópio gerado contra a ambiguidade e ambivalência dos sentimentos, contra o paradoxo. O ódio a vida que é só mudança, sem cessar, cria tradições funestas. E, tal estupidez vêm perpetuando infelicidades extras, além daquelas intrínsecas ao existir. Hitchcock, deixou claro, em muitas entrevistas, que não fazia filmes com denuncias sociais ou com qualquer propósito de reflexão filosófica, “quero criar entretenimento”. Mesmo sem a intenção, seus filmes dialogam com o ponto nodal das personalidades humanas: o medo formador de tabus, segredos, moralismos.

Acompanhamos em suspense o movimento de Logan, do alemão, da mulher, e da polícia, em paralelo a nossa própria consciência. Somos obrigados a nos posicionar desconfortavelmente no sofá perguntando-nos o que faríamos. Enquanto Logan delegou sua consciência à Igreja e seus dogmas, nós e os demais personagens nos deparamos com a sofrida tarefa de pensar e arriscar.

Como a vida imita a arte e vice-versa. Esse é um dilema e tanto ao qual a humanidade foi submetida pela primeira vez com o caso do alemão nazista Eichmann. Um marco na consciência moderna da mesma natureza que o leve entretenimento de Hitchcock. Eichmann é uma figura na história da humanidade que você deve saber a respeito. Sua lealdade ao governo Alemão, ao qual fez votos, não poderia ser quebrada. Profissionalmente era um executivo e tinha um trabalho desafiador. Toda a logística dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial para os campos de concentração e extermínio. Eichmann queria agradar seus superiores. E, assim sendo, coordenava os trens que levavam, como se ratos fossem, homens, mulheres e crianças para o abate cruel dos nazistas. Eichmann não apresentava qualquer incômodo com esse trabalho, bem pelo contrário, sentia-se de missão cumprida, (todos nós sabemos quão nutritiva é tal sensação). Ao final da horrenda guerra Eichmann chegou a ser capturado pelos aliados, no entanto, na ocasião, a relevância de seu trabalho para a “solução final dos nazistas“ não foi levada em conta. Ele fugiu, refugiando-se aqui por perto, na solitária América Latina; até que em 1960 foi sequestrado e levado até Israel para responder sobre crimes cometidos contra os judeus e contra humanidade num tribunal internacional. Sua consciência repousava porque estava a serviço do governo. Portanto, não podia confessar, não tinha nada a confessar. E na sua impossibilidade e inapetência para fazer uso de sua própria ética humana e intuição, comportava-se como um fiel soldado que cegamente segue as ordens que lhe foram passadas, assim como Logan. Esse ponto cego, inebriante e intoxicante, foi denunciado por Hannah Arendt, por ocasião da cobertura jornalística, encomendada pela revista The New Yorker, do famoso julgamento em Israel desse homem, Adolf Eichmann. Naquela época um tribunal assim, de alguém fora de seu território e jurisprudência nunca havia existido. Você é obrigado a seguir a lei de seu país. Eichmann seguiu, seguramente. Assim como Logan, seguia seguramente a lei da Igreja Católica. Como poderia ele responder a crimes para além das leis do governo de seu país? Como Israel teve autoridade sobre um homem de outro país? Como pôde Eichmann ser julgado por leis que nem existiam por ocasião de seus crimes monstruosos? Nem mesmo Israel como estado existia! O próprio julgamento teria sido fora da lei, não fosse reconhecido comumente uma lei maior que as leis seculares. A lei da consciência em relação a outro ser humano. E desde então, cada um de nós, tem oficialmente o direito de violar a lei secular se esta viola o bem maior: outras vidas humanas. Colocando ambos, lado a lado, Logan e Eichmann, não se consegue perceber em nenhum deles traços de paixão, de cólera, de conflito, de dor existencial. Ambos escolheram a servidão anestesiada. E você, tem feito seus esforços ou anda a facilitar e simplificar a complexidade da vida? Arendt chamou os anestesiados de Ralé, pessoas de qualquer nível social que se negam a aceitar as contradições próprias da vida humana e, portanto, da política, que evitam a difícil tarefa de compreender o mundo, os povos, a própria vida. A Ralé não quer diálogos apaixonados, quer repressão e mais repressão. Freud deu à isso o nome de Pulsão de Morte. Foi por essa ausência de monstruosidade que a autora chegou à conclusão da banalidade do mal. Em I Confess de Hitchcock a única coisa não confessada é a complexa realidade compartilhada.

A falta de monstruosidade em muitos dos nossos atos apontam e dão sinal eficaz de que algo não vai bem. Se estivermos atentos esse sinal de anestesia pode ser a via para um tratamento psicológico. O silêncio confessa a agitação das ideias sem tratamento, a total falta de reflexão. Furo que afasta artificialmente o questionamento e a dúvida, eliminando o drama humano através de alucinações de facilidade e felicidade fácil.

Hitchcock ao arrepiar seu público com histórias de medo e suspense nos dá suavemente a chance de experimentar o horror dos paradoxos, a possibilidade de ficar no negativo, de nos encantarmos e nos surpreendermos com as monstruosidades da vida. Ele mesmo confessou que fora desde menino influenciado pelo medo. Medo que pode tanto paralisar quanto nos empurrar para uma vida criativa, condição sine qua non para enfrentrar a pesada mão de nossas reflexões e responsabilidade.


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