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  • Foto do escritorDébora de Mello

Meu bem, meu mal. A vacina, o vírus e a proteção. Uma analogia com o psíquico.

Atualizado: 24 de mar. de 2022



Há ditados e expressões que são inspiradores. Outros verdadeiros e precisos como um bisturi.

Meu bem, meu mal é um desses últimos. Tem novela, tem música. Na filosofia, essa verdade rendeu ao longo de centenas de anos volumosas páginas e muitos andares de abstração do pensamento. Na literatura, no cinema, nas óperas esse dilema inspirou as mais sublimes obras que a humanidade pode chegar a conhecer, como por exemplo, Karenina de Tolstoy. Ou Carmen de Bizet.

O contemporâneo e polêmico filósofo Slavoj Žižek fez fama e repete à exaustão a importância de permanecer no negativo.

Na psicologia, a máxima de Freud de que o sintoma (a doença) é a satisfação da pessoa, sacudiu um século.

Jung, com seu sincero interesse pela alquimia da alma, seus padrões e reações a elementos narrativos, trouxe para a clínica o conceito de Sombra. Embora tão popular, demanda esforço para compreender que Shadow é nem boa nem má.

Se por um lado, a discussão sobre vacina ou não vacina, pode atrasar a imunização física contra o vírus. Por outro, essa discussão da vacina para o Covid-19 de alguma forma está prestando um serviço de excelência para a conscientização dessa forma de cuidado com o bem-estar. A imunização de um corpo. Para isso, a única maneira sabida até hoje, é infectando esse corpo. A diferença entre a vida e a morte é a dose.

Um amigo dileto me disse: “Sou do tempo em que não se discutia vacina”. Bem, eu também, no entanto é fato que não é fácil se entregar à ciência quando não se é um cientista, e saber que estão lhe introduzindo um vírus que pode ser fatal. Penso ser um ato de fé e coragem para muitos.

Essa polêmica esteve latente na história do Brasil, mas já houve época (A Revolta da Vacina, 1904) que para imunizar os cidadãos que tinham medo da vacina, as autoridades decidiram por invadir as casas, levantarem as saias das mulheres e inocular a dose segura do mal à marra. Claro, que àquela época uma campanha abrangente de informação não foi possível, ou não foi tentada. Não tínhamos o SUS, nem tecnologia de comunicação. Hoje, na era da informação, quem tiver interesse legítimo e não uma mera curiosidade, poderá compreender e reconsiderar atitudes enrijecidas.

Assim, a eficácia das vacinas não depende da crença popular. Ao mesmo tempo, é preciso que as pessoas acreditem na ciência e nas vacinas para que elas possam ter efeito coletivo eficiente. É uma pena, o fato de que nossa consciência não suporta com facilidade as contradições e incoerências da alma, sendo assim, fica fácil esquecer uma das partes de meu bem meu mal. Dissociamos, aquele é mal, aquele bom. Em contraste, em nosso inconsciente as quimeras convivem em total liberdade. E é aí que passa a ser responsabilidade (e privilégio) de cada um de nós adquirir autoconhecimento. Precisa-se saber o que somos.

Um processo de análise é como uma vacinação. Num tratamento analítico, pelas suas próprias características, um ambiente viral é produzido. Freud chamou esse fenômeno de “neurose de transferência” e a descreveu assim:

A transferência cria, assim, uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para outra é efetuada. A nova condição assumiu todas características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em todos os pontos acessível à nossa intervenção. (Freud, 1914/1986)

Essa é uma boa diferença entre a terapêutica da vacina e a terapêutica medicamentosa. Ambas eficientes dependendo da necessidade e da aplicação. Podemos usar essa diferença como analogia para processos diferentes de cuidado com a saúde mental.

Se imunidade for a intenção, isto é, a mutação, ou transformação de um corpo para torná-lo mais resistente e saudável, então, sem dúvida é a vacinação o tratamento mais apropriado. Ou uma longa e extensiva análise. Esse processo leva tempo, é demorado porque é necessário produzir anticorpos, e anticorpos psíquicos são ainda mais lentos.

Tomemos o caso de Bolsonaro, presidente do Brasil, como exemplo.

Para se livrar de um presidente assim basta um bom remédio: um impeachment ou não votar nele durante a eleição, como fizeram com Trump nos EUA.

No entanto, é vital desenvolver anticorpos simbólicos que detectem a presença desse traço humano que ataca a civilização, despreza o conhecimento, odeia as mudanças e diferenças, e lentamente, desliga-se de todos os valores humanos. Precisamos da vacina, isto é, de deixar o vírus inocular e nos relacionarmos com ele. em pequena dose, claro, ou com partes dele. As defesas futuras se darão em grande parte inconscientes.

Eu fico muito triste quando escuto, leio e vejo dos reconhecidos como elite intelectual desse país apenas ataques ao Jair, não que não sejam merecidos, o homem é um especialista em bestialidades. No entanto, quando malhamos o Judas, estamos de volta à Idade Média e não mais na era da informação. Deveríamos nos preocupar com isso e agir.

Há um corpo, a nação brasileira, e há um vírus por aí, que não é Jair Bolsonaro, mas que resultou numa doença fatal: elegemos um insensível, e lá estava a disposição dentre tantos, Jair Bolsonaro. Esse corpo/nação não pôde se proteger e nem tinha lúcido em seu repertório defensivo o que fazer.

A inconsciência de meu bem, meu mal, leva a anestesia, que merece reconsideração imediata. Anestesiados não sentimos nem percebemos dores que nos são valiosíssimas como estímulos para o movimento cuidador na comunidade humana.

Aqui, fica o convite para que se reflita sobre duas condições sociais: a cegueira da paixão desesperada por parte dos desfavorecidos materialmente, maltratados e desprezados, pelas cobiçadas elites. A visão distorcida dos vigaristas e oportunistas, isto é, dos desfavorecidos afetiva e emocionalmente. Esses são alguns dos tantos perigosos traços da humanidade que precisamos reconhecer em nosso repertório pessoal-social e aprender a interagir. Avançaremos, se alcançarmos a imunidade coletiva: sabermos da presença também do Mal nos Bons.


**A charge da revista O Malho, de 29 de outubro de 1904, parecia prever a revolta que se instalaria na cidade poucos dias depois: nem com um exército, o “Napoleão da Seringa e Lanceta”, como muitos se referiam a Oswaldo Cruz na época, conseguia conter a fúria da população contra a vacinação compulsória (Crédito: Leonidas/Acervo Fiocruz)







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