top of page
  • Foto do escritorDébora de Mello

Criatividade, inovação e perdição

Atualizado: 24 de mar. de 2022



Já é um clichê que atividades como criar e destruir estão separadas por um fio de grafeno.

Talvez pudéssemos chamar o empresário inventivo de artista. Steve Jobs, Picasso e Wagner desfrutaram da mesma espécie de força inventiva. Meteram suas colheres nesse atemorizante caldeirão das forças naturais e criadoras. Partilharam da virilidade, impulsividade, compulsão. Sofreram da mesma necessidade das ninfas do deus dos bosques e dos campos, Pã.

Conta-se que o cristianismo se inspirou na imagem desse deus da mitologia grega para representar o Diabo. Pã não é o Diabo, mas pelos olhos do cristianismo poderia ser. É metade bode, metade homem; tem chifres, ama a música e por isso carrega sempre consigo sua flauta. Não sem motivos, numa sociedade demais moralista, usaram igualmente seu nome para esse estado psíquico específico e tão desafiador: o pânico.

Sim, a força criativa da natureza humana continuamente traz consigo momentos de pânico. Um dos quadros de Picasso foi retocado por ele mais de mil vezes num período em que se trancou por seis meses num porão. Não temos relatos de seu psiquiatra, mas sabemos da vida boêmia e ardente que levava. Conhecemos o olhar gentil, o rosto firme, o corpo robusto de Gertrude Stein e o papel relevante de sua existência no percurso desse artista genial.

Sim, há muita criatividade e tumulto na atividade empresarial também. Pois, para haver criatividade precisa-se imersão nos reinos da imaginação, das probabilidades infinitas e das projeções visionárias. É preciso se perder no mundo da lua. Todo esse terreno é movediço.

É uma variante, do estado que Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês chamou de “espaço potencial”. Potencial para a vida que vale a pena ser vivida.

Segundo esse homem feliz, que tratou milhares de crianças e famílias, a criatividade e o brincar dependem exclusivamente da possibilidade desse espaço ser alcançado pelo indivíduo criador. Nem todo artista e empresário, apesar do talento, alcançam esse lugar. Acabam sugados e aprisionados pelas forças criadoras, desligam-se de seus companheiros humanos. Acabam por trocar relações baseadas em trocas frutíferas por uso abusivo. Criar, inventar sem se perder é raro, portanto.

A boa notícia é que Imaginar e criar são qualidades intrínsecas a toda e qualquer mente. Para Carl Gustav Jung, o funcionamento da mente inconsciente é predominantemente criativo. Portanto, criar não é dádiva apenas para os artistas. Criamos o tempo todo. Sei que há pensadores importantes que sustentam que toda originalidade não passa de esquecimento, e concordo. No entanto, alguns se lembram, ou redescobrem, e a isso podemos chamar de ato criativo. Por certo, algumas atividades, como a dos artistas: pintores, compositores, escultores, poetas, cineastas, cantores, dançarinos etc. Também os cientistas, e incluo aqui, também os empresários, diferente de outras tantas, exigem um diálogo intenso e robusto entre a imaginação e a realidade compartilhada. Retirar um produto das prateleiras, não importa se das prateleiras luxuosas, alternativas, low profile, ou de baciadas baratas – demanda um pouquinho de inventividade. Em contraste, colocar um produto nas prateleiras demanda muito mais que inventividade. O que um dia poderá ser um produto (obra), no princípio, não passa de um feeling. De nebulosa impressão até algo compartilhado em sociedade é necessária uma usina de energia, uma indústria física, psíquica e emocional.

De onde vem tudo isso? Chamamos de inspiração muitas vezes. Os gregos que tanto avançaram na compreensão do mundo diversificado chamaram-na musas. São nove delas. Para pessoas que vivem em 2021 é muito difícil entender o que é uma musa.

O mergulho nessa usina imaginativa, essa obcecada contemplação, aterrorizante impulsividade e compulsão em fazer tem por vezes um custo afetivo, familiar e social insustentável.

Enquanto em desenvolvimento de uma obra de arte ou um novo produto, o artista vivencia tanto a liberdade total criativa quanto o aprisionamento da técnica, do método e da disciplina. A alma está ocupada em mergulhar no núcleo das coisas e subir com a expressão concreta, material daquilo que captou. É frequente e prolixa as imersões na caverna da alma, na individualidade. Se formos bem fundo em nós mesmos atingimos o umbigo do coletivo. Hoje seria mais fácil compreender a famosa frase de Andy Warhol sobre os democráticos quinze minutos de fama mundial.

Esse mergulho livre no abismo das forças criadoras sem proteção pode esfolar uma vida e seu cluster amoroso. À parte da demanda por longos, apaixonados e exaustivos debates com seus pares, o processo de empreender uma obra-de-arte, um produto novo no mercado é sobretudo, solitário.

Toda atividade criadora é em grande parte solitária pelas horas e horas navegando na própria imaginação. Justamente esse afastamento da experiência trágica humana comum que pode levar o empresário, o artista, o chef premiado a se tornar, apesar da obra de excelência, uma pessoa reconhecida como escroto.

Em dias de #metoo essa situação repulsiva fica em evidência. Seguimos a deleitarmo-nos com as fascinantes e sublimes obras herdadas, apesar do monstro-homem, que as criou.

Em escala menor, no dia-a-dia de muitos menores empresários e artistas o mesmo pode acontecer. É o que se vê nos consultórios de psicólogos e nas salas de yoga. Famílias infelizes, traições, transtornos alimentares, manias e depressões numa gangorra infernal. Abuso de álcool e drogas. Um uso triste da sexualidade. Ou nenhum uso dela. Além de doenças crônicas e até mesmo fatais.

Precisamos de Pã; é vital! E para não nos perdermos nesse espiral de vida, carecemos de reconhecer sua força e cuidá-la em nós mesmos. Jung deu a essa proteção o nome de individuação. De todos as abordagens psicológicas, inclusive a psicanálise minha linha mestra, esse é para mim a palavra que melhor traduz a luta diária, constante do estar desperto para os movimentos de dança e esgrima entre a força vital e sua própria vida. Para que não ocorra uma identificação cega entre elas, ou uma constante anestesia da alma até o ponto em que a pele está como morta, não percebe a dor e o incômodo e, tampouco, a carícia. A banalidade tomou conta de sua vida.

Nutrir-se com as obras-de-arte do passado, os clássicos, pode enriquecer o repertório de experiências humanas e ajudar aos criativos, inovadores e empreendedores a estarem em contato mais íntimo com nossas dependências afetivas, e com aquilo que direciona nossa vida para o melhor que ela possa oferecer, apesar das lutas diárias.

Dentre todo o repertório criativo da humanidade ,destaco, em especial sempre, a ópera - por causa de sua reunião de artes e artistas - como sendo um dos mais eficientes antídotos para a tendência anestésica da vida moderna e contemporânea. Ainda mais, porque essa foi a intenção de seus inventores durante a época que recebe o nome mais poético de todas as épocas: o Renascimento.


35 visualizações0 comentário
bottom of page