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  • Foto do escritorDébora de Mello

Uma homenagem à luta da mulher no dia da mulher.

Atualizado: 24 de mar. de 2022

Já que existe um dia que celebra as mulheres, por que não o comemorar? Sim! Festejemos! Jogando letras festivas por todos os cantos!

Minha maneira de celebrar foi por relembrar o importante momento na história da saúde mental, em que dois homens puderam, de fato, escutar o que uma mulher tinha a dizer. E o que ela tinha a dizer mudaria o tratamento do sofrimento nervoso (saúde mental, como chamamos hoje) por muitas décadas à frente até os nossos dias. Foi o encontro íntimo de sua sensibilidade com o respeito de seu médico, que a fecundação da PSICOterapia aconteceu. A mulher a que me refiro é a mais famosa da psicanálise e de todas as escolas de cuidado mental.


Falo de Bertha Pappenheim, conhecida como Anna O. Nascida em 1859 em Viena, Áustria e enterrada em 1936 em Frankfurt-am-Main, na Alemanha.O Caso zero, Anna O. está registrado nos Estudos sobre Histeria, publicado em 1895.

O feito de Bertha foi interromper o procedimento do médico e dizer-lhe o que de fato estava alterando seu estado de sofrimento. Com esse Auto lá! Bertha colocou Sigmund Freud no bom caminho que levaria, como já mencionado, às psicoterapias de hoje. Foi por conta de um imediato interesse de Freud pela declaração daquela mulher, que sofria de histeria grave, que a ideia de transferência veio à luz, e seria desenvolvido nas décadas seguintes como conceito fundamental para a técnica e o método de trabalho psicoterápico. Sobre tudo o psicanalítico.

Bertha era filha de uma família burguesa. Seu pai, um prodigioso comerciante e sua mãe herdeira de uma família afortunada na Alemanha. Era judia, e sua família seguia a religião de maneira ortodoxa. Muito bem educada, falava diversos idiomas. A neurose que acometia Bertha não era nada leve. Ela via cobras ameaçadoras em muitos lugares e sofria de terrores. Sofria de estrabismo intermitente que lhe feria a visão. Contorcia-se. Vomitava. E, por fim, caia na cama, paralisada. Vivendo uma vida miserável dentro de um contexto economicamente afortunado. Já tinha tentado todos os métodos que existiam até então. Em nada funcionando passou a ser atendida pelo Dr. Josef Breuer, um eminente médico de Viena, que vinha dedicando-se ao estudo e a métodos de tratamento mais eficientes para os que sofriam das tais doenças nervosas. Isto é, quando a causa de um estrabismo, ou uma paralisia, ou contorções e vômitos não eram consequência de uma clara lesão física ou no cérebro ou no sistema nervoso. A dedicação de Dr. Breuer ao sofrimento de Bertha e a seu próprio interesse em fazer descobertas significativas em sua área são inegáveis. Breuer chegou ao ponto de visitá-la duas vezes por dia, todos os dias da semana.

Bertha interrompeu e comunicou ao seu médico que seus sintomas eram eliminados por falar com ele. Ela precisava falar para ouvidos atentos e, em fazendo assim, ficava curada. Talvez, qualquer outro médico tomaria esse comentário de uma histérica como uma bobagem, por sorte esse não foi o caso. Bertha chamava seu tratamento de talking cure, - cura ao falar. Pronunciou em inglês pois, justamente, um de seus graves sintomas foi esquecer a língua materna, o alemão, e, portanto, falava apenas em inglês. De fato, Breuer percebia a eliminação temporária dos sintomas, e por isso mesmo, deixou de praticar a hipnose duas vezes ao dia e disponibilizou-se a visitá-la e ouví-la tantas vezes. Bertha também chamou seu tratamento de chimney sweeping, - limpeza de chaminé. Ao nomear aquilo que produzia efeito benéfico em si mesma colocou a medicina no curso das terapias, a hipnose é abandonada, por não trazia resultados duradouros, os sintomas insistiam e voltavam. Enquanto que quando falados eles eram eliminados. A história prossegue e logo um evento específico tiraria Breuer dessa situação e introduziria Sigmund Freud nela. Nesta época, Dr. Freud, com sua maneira peculiar de olhar para o mundo e se relacionar com seus mestres (que ele viria a descrever como neurótica), já trabalhava e investigava intensa e intimamente com Dr. Breuer.

É anedótico pensar que o encaminhamento de Bertha para Freud se dava por conta dos conteúdos dos delírios de Bertha, um bebê do Dr. B. que vinha chegando. Esse bebê, tomado metaforicamente, poderia ser o novo modo de compreender e tratar o sofrimento psíquico usando o psíquico e a fala como mediadora de um encontro entre duas pessoas, o médico e seu paciente. Essa era a grande novidade.

O escândalo de uma gravidez imaginária onde ela se contorcia e gritava que o filho do Dr. B. estava chegando foi definitivo na troca de médicos. Breuer atendeu o pedido de sua esposa, que já não aguentava a intrusão do Caso Anna O. em sua vida. Breuer assustou-se com a intensidade dos afetos à tona tanto em Bertha quanto nele mesmo. Assim, encaminhou Bertha para Freud, cujo interesse na histeria e no funcionamento da mente eram o mesmo que o de Dr. Breuer, e, ainda mais, já estava convencido de que a sexualidade humana era causa das histerias.

E Bertha, o que aconteceu com ela? Seu delírio de gravidez também gerou vida. Apesar de sabermos que Bertha não foi totalmente curada - continuou a sofrer de alguns sintomas - sabemos que ela conseguiu ter uma existência ativa tanto emocional quanto culturalmente. Curioso que a atividade que ela escolheu para sua vida foi cuidar de crianças. Embora Bertha nunca tenha se casado e nem tenha tido filhos, é reconhecidamente uma inovadora nos cuidados infantis, atividade a que se dedicou. Pessoalmente cuidou de ao menos 100 crianças trazidas da Russia em consequência do massacre judeu. É uma figura aplaudida e importante na Alemanha, sobretudo, dentro do movimento feminista austríaco e alemão. Quanta vida e disponibilidade para o cuidado com outro ser! Ela experimentou o que muitas mulheres ainda hoje são impedidas. Bertha foi autora de si mesma. Repleta de experiência com crianças um ano antes de sua morte declarou, muito antes da, também inspiradora Silvia Federici, que:

“se houver justiça, na próxima vida as mulheres farão as leis e os homens terão os filhos”.

Essa nova vida querida Bertha só na imaginação, por ora, jamais existirá! E, por toda sorte, eu não daria meus filhos em troca de fazer lei nenhuma nem nessa vida e nem em qualquer outra! Se esta é a moeda, não haverá troca.

É claro, que Bertha apontava para uma questão humana insolúvel, homens nunca terão filhos à maneira que uma mulher tem filhos. Para mim, Bertha aponta para a marca humana na mulher. Expõe a situação singular, indelével da maternidade sobre a mulher, que estabelece laços inenarráveis com sua prole, tão distinto de qualquer outro existente, para além de suas próprias forças e consciência. A mãe é aquela quem tem enigmaticamente o útero, o leite e a disponibilidade para fazer renúncias a qualquer coisa em prol dos filhos. Nasçam esses ou não.

Parece que Bertha sabia disso também e, notoriamente, postou que “ter filhos” é a questão que apenas uma outra vida poderia solucionar. E é com essa realidade que devemos lidar, sem fantasias, sem atacar a maternidade, reduzindo-a a uma pilha de tarefas intermináveis. Há em questão uma condição humana única.

Nos jornais de hoje pela manhã, dia da mulher, mais uma vez, vem à baila como é difícil se organizar para lidar com tantas demandas quando se é mãe. Sobretudo, para aquelas mães que não contam com a facilidade de pagar alguém para ajudar com os afazeres mais pesados. No entanto, colocar o holofote nas tarefas é reduzir a questão da mulher de “ter filhos e não fazer leis”. As forças em operação são arquetípicas, transcendentais e atávicas. Por certo, tal volumoso e complexo conjunto de elementos emocionais, psíquicos e físicos não é a gincana diária.

A descrição mais próxima do que seria esse laço com a prole, que encontrei na literatura até hoje, está no famoso O Banquete de Platão. Em uma das versões de Platão, Eros, é filho de Poros e Penia (Recurso e Pobreza), é um intermediário, unindo, atraindo e colando de um jeito que não se conhece em outra parte. A atração magnética entre a falta e a força para obtenção. A questão é polêmica e secular entre os filósofos. Para mim recurso, pobreza e amor QUASE incondicional é uma tríade que existe em potencial em todas as mulheres. O abuso da sociedade não seria, apenas, da mão-de-obra barata de uma mulher para criação de filhos, uma evidente necessidade da comunidade humana. Filhos são a próxima geração e garantia de continuidade de tudo. O abuso, ao meu ver, é da psique da mulher e seu impulso a “ter filhos”. Uma fonte de energia criativa, dedicação monstruosa e abnegação que, sobretudo, em um mundo contemporâneo com muitas oportunidades de vida fere irremediavelmente uma mulher. A idealização e supervalorização da tarefa materna é outro fator de peso e que só acrescenta na lista de tarefas infernais. Um monstro que se alimenta de si mesmo.

Que filho dá trabalho e por vezes nos levam à loucura e, a condição de, imaginariamente, cometer crimes passionais com esses seres desde o dia zero, toda mãe já sabe. Importante esclarecer que quanto menos conscientes dessa disposição tirânica estivermos, mais suscetíveis a barbáries com nossos filhos ficamos. Inevitavelmente, os ferimos e os cuidamos. O porquê achamos que a mãe vizinha não passa por isso é outra história, outras mazelas do nosso psiquismo.

Finalizando, o bom barulho que a persistente luta feminina criou, abre espaço para reflexão. As mães não querem delegar seus filhos. Talvez queiram criar esses filhos de maneira diferente? Simplificar? O que é necessário para respeitar a condição de ter filhos? Como criar espaços onde as mães possam manter suas mentes em órbita para estar com seus filhos. Esse momento, de pandemia, onde nossas sensibilidades para subjetividade estão aguçadas, talvez seja o ideal para a pergunta mais importante de todas: O que estamos fazendo com a condição de “ter filhos” o mais mágico dos instintos?


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