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  • Foto do escritorDébora de Mello

The Red Shoes, 1948. Um filme encantado.

“Não esqueça, uma grande impressão de simplicidade só pode ser alcançada por uma grande agonia do corpo e do espírito”.

Os sapatinhos vermelhos do conto de Hans Christian Andersen (1805-1875) vestem os delicados pezinhos de uma estrela bailarina na imaginação do cineasta e roteirista britânicos. Britânicos? Sim, como Alfred Hitchcock. Aliás, cuja influência sobre Michael Powell e Emeric Pressburger é reconhecida.



E não são as sapatilhas de uma bailarina de fato encantadas? Em Andersen, os sapatinhos chamam atenção nos pés da menina Karen, são alvos do preconceito e de enxovalhadas, no entanto a fascinação de Karen pelos sapatos vermelhos é tanta que a situação acaba por ser invertida e, de repente, os sapatos conduzem-na a dançar sem parar na direção que desejam, ignorando qualquer comando da menina e, essa direção é a morte.


A versão dos cineastas é simplesmente bela. A película transmite uma dura verdade de forma tão maleável e flexível como uma bailarina. É possível aplicar a metáfora em diferentes situações da vida humana nesse planeta, esparramadas em milênios.

A história do filme é simples. Uma companhia de ballet quer trazer a vida uma nova peça baseada no conto dinamarquês. O burocrata, dono da cia de ballet, Boris Lermontov, convida uma jovem e desconhecida bailarina, Victoria Page, para o papel principal, Karen. Convida também um jovem e desconhecido músico e compositor para escrever a partitura. O burocrata parece ser o único caminho para os jovens artistas chegarem até o palco. Uma espécie de pacto com Mefistófeles.

No começo assistimos a difícil tarefa de despersonalização tanto do músico, como da bailarina. É preciso exorcizar qualquer capricho, opiniões, reflexões, nada importa. Só o que importa é a história a ser contada, através das habilidades artísticas daquelas jovens almas agoniadas. Quando esse objetivo é alcançado, a peça estreia e faz sucesso. Logo, borbulham os contratos para encenação nos teatros famosos dos principais centros urbanos. É então que o inevitável acontece. Músico e bailarina se apaixonam. Descobrimos, junto com Lermontov, o desastre. A difícil possibilidade de existência harmônica entre o artista e o humano, se é possível fazermos essa divisão imaginária.

O burocrata avança sobre Victoria e a pobrezinha precisa decidir entre a dança e o amor romântico. Victoria decide pelo casamento. A partir daí passa a dançar uma vez ou outra. Por outro lado, a peça de ballet, The Red Shoes, sem Victoria Page, não é mais apresentada.

Até que num encontro inesperado entre Victoria e Lermontov a tentação de voltar a dançar se apresenta, Lermontov faz o apelo diretamente a alma bailarina atormentada. E dessa vez é outro homem quem lhe dá o ultimato: seu marido. A garota deve decidir entre uma coisa e outra, e na errônea conclusão da impossibilidade de conjugar, distribuir suas paixões ela é pega. Ou a dança ou o casamento. Victoria decide dançar. E eis que o faz-de-conta ganha vida. As sapatilhas vermelhas arrastam os pezinhos de Victoria para trás. A delicada bailarina se vira, dá às costas para o palco, saltita pelo corredor até o balcão externo e se joga dali.

O filme é lançado em 1948, apenas um tempo depois da Segunda Grande Guerra, numa Londres castigada. A guerra mudaria a filmografia de Powell. O conflito belicoso mundial afetou toda criação artística. Arnold Schoenberg diria: “Depois do que vivemos, como poderia eu compor como antes?”


A arte sempre acompanha seu tempo. E persiste ao espírito dos tempos.

Simbolizaria a morte de Victoria a morte da ingenuidade depois do espetáculo de crueldade assistido e vivido durante a guerra? Não penso assim. Não perdemos nossa ingenuidade, talvez temporariamente. O que apreendemos pelos relatos de guerras é que de tempos em tempos oscilamos da maturidade à ingenuidade. Talvez com velocidade muito maior do que poderíamos e gostaríamos. The Red Shoes, expõe uma combinação funesta: ingenuidade e força.

O filme é como uma boneca russa, um conto dentro de um ballet, o ballet dentro de um filme, todos atravessam o real. Fala da vida do artista, dos períodos artísticos, da importância das artes na transformação da psique humana através dos tempos.

Quem imita quem, a vida ou a arte? Que inveja mortal entre a arte e a vida é essa? Oscar Wilde sabia que nesse jogo mimético a arte venceria, sendo aquela que fascina mais que sua amiga: a vida. Uma força de opostos, como sugeriu Jung, ou duas forças opostas como sugeriu Freud; onde por um lado, sopra o fôlego da vida nas narinas das folhas de papel, do rolo de filmagem, das partituras e das telas, por outro condena à destruição horas e horas de vida ordinária. Criar exige renúncia e sacrifica os sabores diários e ordinários.

E bem sabemos como o ordinário nos é sagrado. O aconchego, a culinária e as bebidas, os amigos, os beijos e abraços, uma flor no vaso, abraçar nossos filhos.


O filme narra o desequilíbrio entre tais forças tão poderosas. Sim, para se dar vida a qualquer arte, considerada obra-de-arte ou não, sendo o artesão consagrado ou não, é necessário clusters de energia. Todo homem ou mulher que se meter a criar alguma coisa terá sua mente sequestrada, e reunirá força obsessiva necessária para levar a cabo seu pequeno ou grande Frankenstein. Sabe quão pesado é o treino e a quantas renúncias, que já são resultados de intensas batalhas psicológicas, se entrega a bailarina para que ela flutue pelos dramas que encena? E uma ópera encenada? E para que um filme estreie nas telas?


The Red Shoes é um filme que faz-nos compreender a insustentável leveza de existir.

E se pararmos para pensar a bailarina como a figura da delicada mulher, ainda existente nos dias de hoje, quando encurraladas pelo pensamento binário e machista de todos os lados. Dominada. Duas horas onde encantamento e sabedoria comungam, em cada detalhe, em cada diálogo, na coreografia, nas cores remasterizadas, repleta de símbolos, filosofia e psicologia.


Bem disse Friedrich Nietzsche que o caos em si faz uma estrela cintilante. Uma bailarina, e tudo que essa imagem precipita nos recônditos de nosso self, são estrelas que cintilam pelo chão da terra. Olhamos para baixo para ver esses saltitantes seres. A física nos presenteou com uma potente metáfora: soubemos que o caos é ordem, no entanto uma ordem secreta, não sabida pelos humanos.


Todos mereceriam assistir a divina cena em as sapatilhas vermelhas calçam a bailarina. Elas abocanham os pezinhos, sabemos que está viva desde ali, o horror sobe pela espinha.


A escolha dos sapatos como força que engole a vontade humana retirando-lhe qualquer possibilidade de controle, tanto de Andersen quanto das sapatilhas por Powell não são à toa e poucos símbolos seriam capazes de condensar o que é simplesmente dançar pela vida, viver. Arriscar e entregar-se a paixões.

As paixões são como pássaros canta a impetuosa Carmen, de Bizet, e, lamentável ou não, os pássaros migram e elas também. E quando menos percebemos acordamos atracados à vida de outro alguém humano ou não humano, e nos perguntamos como fomos parar ali. Que força nos possuiu?

Paixão, obscuridade, caos parecem se relacionar intimamente.


Biografias de muitos artistas atestam esse conflito fatal. Filhos dessas bizarras vidas depõem por todos os cantos o inferno e às vezes, algumas vezes, o paraíso que foi ter como pai ou mãe um artista devotado. A religião parece ter acertado com a obrigação do celibato na vida desses devotos obsessivos.

The Red Shoes é uma história escura, pesada que flutua pelas letras, pelas cores, pela música, pelos cenários, enfim, pela alma humana.


Powell nos permite dar uma olhadela, mágica, pelo buraco da fechadura da alma da Arte, do Belo, quando esses fazem uma vítima, com sua boca vermelha a sugar o sangue de alguns seres humanos.

Eu li em algum lugar que não se trata somente daqueles que fazem arte, mas também de seus amantes, daqueles que se inspiram pelas humanidades. Que se intoxicam pela arte, pela história, e pelos relatos de vida. E já não sabem como viver sem isso.

E as horas passam... Bendita sejam as musas que a alguns trazem períodos de equilíbrio.

(Enquanto escrevo morre Aldir Blanc de covid 19. Que seja uma humilde homenagem em memória desse seguidor da arte e da história)

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