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  • Foto do escritorDébora de Mello

Somos feitos de barro. Alguém duvida?

Atualizado: 31 de dez. de 2020



Não nos espanta a capacidade do ser humano para adaptação? É excepcional! Por certo que não deveria espantar a mais ninguém, uma vez que já sobrevivemos à era do gelo ou, muitos de nós, à morte de alguém muito querido em nosso coração. E, acima de tudo, sobrevivemos ao útero de nossa mãe, à moleira aberta, e os famosos terríveis primeiros anos de vida.

Somos feitos de barro. Sem lágrimas, enrijecemos. Ficamos duros. Mas, se as lágrimas escorrem e o sangue circula, esquenta. Então, alcançamos o ponto de modelagem e nos adaptamos.

Como brasileira, não tenho a menor noção de como é aguentar firme e ter a felicidade de sobreviver a uma guerra estúpida e sanguinária. No entanto, alguns têm comparado as estratégias de quarentena da pandemia do Covid-19 a uma guerra. Como burguesa e, portanto, feita de barro como todo ser humano, mas com cara-de-pau, confesso que me causa uma certa agitação escutar esse tipo de coisa, principalmente tendo passado novembro passado na companhia de o Diário de Berlim ocupada, 1945-1948, de Ruth Andreas-Friedrich, que relata seu cotidiano de privações e sofrimentos de todos os tipos vividos nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial - quando Berlin estava ocupada pelos aliados desalinhados.

Tenho fresco na memória os relatos de terror. Passavam frio sem cobertores e óleo para os aquecedores, dormiam em camas de jornal ou qualquer coisa parecida, o racionamento dos alimentos, o ágio, a violência, a contaminação, a doença e a morte. Por isso, nem de longe, bem longe, se assemelha ao que vivemos numa quarentena, no conforto de nossas casas de classe média e arriba. O que dirá os dias mesmo de guerra retratados por outros tantos livros e muitos filmes.

Estar trancada no conforto de casa, ocupada com seu trabalho, com o cuidado da sua casa e de seus filhos, aninhar-se ao final do dia no aconchego do sofá, ou mesmo chorando pela desigualdade e por aqueles que estão sumindo. Ou sentir um leve frio na espinha enquanto lemos ou assistimos algum dos diversos gurus da atualidade, dos cientistas às astrólogas, derramarem suas imaginações de como será o mundo pós pandemia não nos coloca na posição daqueles que sofrem fisicamente com toda desigualdade de condições.

Acredite! Isso não é estado de guerra, nem situação de fortes privações. Sofremos e é legítimo, porém sofremos deitados no divã.

Atenção! A guerra é sim condição de vida de muitos de nossos companheiros humanos hoje e ontem. Tanto pela Covid-19 quanto por tantos outros males, dos quais os reis e a burguesia sempre tiveram melhores chances, e, quiçá alguns chegaram até mesmo a sofrer.

No entanto, os burgueses, alternativos ou conservadores, sofremos. Não só de cegueira, mas nos angustiamos, adoecemos, tornamo-nos obesos. Se o vazio não está no estômago, está na alma. Madame Bovary sofria.

Só temos uma saída: lutar contra a anestesia da experiência humana, e assumir o cuidado de tudo. Começando por agasalhar o nosso sofrer. Aquele egoísta só meu? Sim! Mas por quê? Para agir!

Não sei se há necessidade de comparar a pandemia com a guerra. Vivemos, hoje, uma pandemia de um vírus desconhecido que pode chegar a ser fatal, para o qual os sistemas de saúde no mundo todo não estavam preparados. Discriminar é um dos recursos mais importantes na tarefa de se apropriar da experiência humana. Antes de respostas rápidas, é interessante que possamos revisitar nossas emoções, no corpo. Em vivências. Ainda mais claras e vindo à tona durante os dias de quarentena. Negamos? Brigamos? Entediamos? Angustiamos? Triunfamos? Deprimimos? Remediamos? Ou nos movemos? Quanto da criança vivaz que inventava seu próprio brinquedo há em você? Quais escudos nos são mais fáceis quando enfrentamos uma crise? Para cada apropriação de autoconhecimento há, ao mesmo tempo, um pedacinho do elo da corrente humana em restauração.

Sobre a condição de miséria no mundo e em especial em nosso país não há nada de novo há muito tempo. Muitos de nós, os “cara-de-pau” ou não se importam e vivem no vazio da ignorância, ou ao menos conhecem a realidade, sem sofrê-la, sem movimentar-se. Nos estados pobres, nas periferias, lá é guerra e a pandemia é uma batalha grande e sufocante, mata. Que tal interessar-se pelo que está além de sua imaginação e ler outro diário? De uma sofrida e poética mulher brasileira: Maria Carolina de Jesus, em “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, dos anos 50.

Ampliar nosso repertório de experiências emocionais e dramáticas - antes de tudo por deixar a vida acontecer a nós, percebê-las, como dizia o poeta – ou por consumir arte séria, e de maneira séria, que significa usá-las como laboratório de sofrer a experiência humana, deixar ser afetado, contribui num engajamento mais responsável e satisfatório com a vida. A arte nos ocupa serenamente, nos leva a tomar decisões mais alinhadas com tudo à nossa volta e, sobretudo, a considerar nossos companheiros humanos.

Sofra. Entregue-se ao que já é. Segure no peito, pelo tempo que conseguir, o sentimento que for. Dor? Pânico? Revolta? Carinho? O barro vai amolecer. Quando o peito acalmar estaremos mais fortes e fazendo alguma coisa relevante.

Se persistir a dureza, o ressecamento insistir, então procure alguém em quem você possa desabar como um tijolo e abrace. Acolha.

Se, mesmo assim, petrificar (irritação, angústia e amargura), se a dureza machucar seus pensamentos e der dores de cabeça, de coluna e de estômago, ou se suas pernas não quiserem sair da cama pela manhã, então recomendo veementemente que procure qualquer cuidador de almas que leve sua profissão a sério. Aposte! Não desista, pois o processo é lento e longo.

Com o barro no ponto, muitas pessoas irão se adaptar ao que vier. Já estão espantosamente se adaptando ao que precisa ser feito na pandemia contemporânea e têm feito do melhor modo possível.

Parece ser que, quando a necessidade se impõe entre hoje e o amanhã, lutamos ou fugimos. De qualquer forma, se não morrermos pelo inimigo, certamente sobreviveremos. E se isso acontecer significa que os ventos mudaram de direção- mesmo que temporariamente - e você volta a se sentir um tanto à salvo. Poderá aprender com a tempestade que passou. A vida volta a ser mais leve, apesar do peso de uma alma menos vazia. Mais que tudo, você poderá olhar para o lado e contribuir.

Preste atenção, pois bem aqui, quando se sente a salvo mora outro perigo. Tenho escutado que a pandemia tem feito alguns recobrarem a memória. Lembram-se de como era bom ter a presença dos queridos. De como gostariam de ter dedicado mais tempo à isso ou àquilo tão importante em suas vidas. Não lhes dedicavam tempo para o cultivo. Tinham esquecido. Esse é o perigo de sermos seres que nos adaptamos. Podemos esquecer nossas necessidades. Anestesiar nossos tecidos. Podemos nos moldar na vida de outros. À dores psicológicas crônicas. Aos princípios e valores que não são nossos. Vamos ficando e ficando sem assumirmos que não está bom, sem lutarmos pelas mudanças. Em outras palavras, nos acomodamos como a argila num molde que não é o nosso.

É preciso regar o barro constantemente para que ele seja útil à criatividade e à vida.

Conhecer e atender nossas necessidades é sine qua non para um processo de individuação, aquele molde que é só seu. E, assim, poder ter uma vida sentida como barro bom, diariamente criativa.

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