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  • Débora de Mello

“Dramatic views” homenagem de uma psicanalista ao Mt Rainier.


Sunrise at MT. Rainier

Entre uma esquina e outra aqui em Seattle, dependendo do tempo, alguém desavisado pode trombar com o majestoso gigante e alvo, Monte Rainier. É uma grata surpresa. Nos folhetos sobre esse parque nacional americano, lê-se sobre algumas trilhas de caminhada: “Vistas dramáticas”. Como psicanalista aprendi a respeitar e me surpreender com a grandeza da dramática natureza humana, sendo assim, não pude resistir e lá fui eu pelas trilhas sugeridas.

Monte Rainier dorme quieto, sem fazer um pio, mas na verdade Rainier é um vulcão ativo, na lista dos mais perigosos do mundo, ao acordar, sua ira violenta alcançará bem longe, dizem os especialistas que numa explosão de máxima potência as cinzas podem alcançar Vancouver, duas horas e meia ao norte, e São Francisco, 10 horas ao sul. Destruirá vidas e obras.

Sua última erupção foi em 1894, ano que a psicanálise, do gigante Sigmund Freud, também entrava em erupção na Áustria, com a publicação dos primeiros estudos que demonstravam a relação entre a neurose, psicose e o adoecimento do corpo e da vida. O médico austríaco teve a coragem de investigar a aparente ideia absurda de que a perna que paralisava, o dorso que contorcia, a garganta que sufocava eram resultado de um processamento psíquico peculiar para acomodar experiências afetivas parecidas, porém vividas em diferentes momentos. Cada parte do corpo era como uma personagem; tem deixas, linhas e gestos predeterminados a desempenhar no drama psíquico em ação, muito embora desconectado da consciência, e, portanto, inconsciente.

É assim desde sempre, mas o ser humano parece não querer saber nada sobre isso. Desde os primeiros registros da vida humana na terra homens e mulheres adoecem, matam e morrem por amor, adoecem, matam e morrem por medo e ódio. Alguns dizem que estão a morrer de rir. Mas não é verdade, sempre sobrevivemos as gargalhadas abdominais. Goethe e Schiller, Aristófanes e Sócrates, e a totalidade dos poetas escreveram sobre a força com que os dramas afetam a vida humana. Arthur Schopenhauer também admoestou os homens a considerarem com mais seriedade as questões do amor e suas curiosas e sérias consequências na vida, mas nossa espécie parece ser também “homo esquecidens”. Brincadeiras à parte, a verdade é que um pouco de esquecimento é necessário. Comparando, assim como é sabido e imediatamente esquecido que o vulcão, a qualquer tempo, irá acordar, assim é a relação dos homens e mulheres com suas psiques. A histeria dos tempos de S. Freud hoje em dia é pitiatismo. Mas, no final do século XIX, histeria tinha o mesmo status sério e desafiador que goza a depressão, somatização, autismo, TDHA, nomeando apenas alguns do ranking atual. Em outras palavras, a tal natureza humana quando irrompe, como as lavas do vulcão, causa estragos, muitos deles, lamentavelmente, irreparáveis.

Como se vê, minha interação com o Monte Rainier, para além do contato com a natureza, serviu-me de metáfora belíssima para o contato com outro tipo de natureza, a humana. Como nas propagandas do Monte Rainier, a revisita a natureza humana garante vistas dramáticas.

Enquanto quieto, o vulcão oferece aos homens, mulheres e crianças diversão e deslumbre durante os 365 dias do ano, e sob ângulos de todos os seus 360o. Um monte dessa magnitude cresceu com lavas estacionadas de milhões de anos. Uma pessoa querida me lembra que no Brasil as montanhas têm a forma do corpo da mulher, aqui, os ângulos agudos desenham o corpo de dragões. No inverno os visitantes interagem com as partes mais baixas da montanha, totalmente forradas por camadas espessas de neve, exceto os mais aventureiros que sobem de qualquer modo. No verão, por outro lado, todos estão convidados a caminharem pelo topo, como quem anda pelo teto; o hipnotizante branco, dos brilhantes flocos de neve, dá lugar aos prados.

Os campos de Rainier são um quadro de Monet, porém vivos, ao relento e, frágeis.

Em uma recente caminhada, em um determinado ponto, meus olhos se afastaram do colorido das flores para ler: “Coming soon”, era uma pequena placa fincada na terra seca com um desenho de uma pequenina flor. Pisquei para desembaçar a vista e entendi que ali onde os meus olhos leigos sobre botânica não enxergavam a flora, a vida já brotava. Se pudesse colocaria várias dessas plaquinhas no psiquismo dos analisandos, adultos e crianças, deixaria estampado a confiança e a esperança de vida que só o olhar especialista consegue enxergar, e trataria de espantar pés mais brutos e desavisados do terreno em recuperação.

Já na rara tundra encontrada apenas no ártico e no Monte Rainier, onde a vida não tem tempo suficiente para enraizar, os passos devem ser firmes e fortes para o corpo não tombar. Há quem diga que os arquétipos são como as pedras da tundra, com eles não se pisa em ovos, o terreno é arriscado, e você não vai querer cair num complexo pontudo e aprisionador. As pedras registram centenas de milhares de anos de história das erupções, cada pedra é um pedaço sobrevivente de um tempo distante, como os arquétipos. Se você firme aguentar o sol quente, o calor e o cansaço do corpo, não apenas os olhos se arregalam encantados, mas também os ouvidos, de repente, as pedras se transformam em teclas de piano, e para além dos sons da fauna e dos ruídos dos rios e do vento, agora soam notas musicais.

As longas horas são recheadas de encontros inusitados, com marmotas, cabras, veados e passarinhos. Corvos robustos e singelas borboletinhas.

Águas gélidas colorem os lagos irresistíveis, infelizmente só os pés parecem ter coragem para saboreá-las.

Com tanto por fazer e aproveitar o sol acorda bem cedo e dorme tarde no verão. A luz se vai por volta das 21h, e com ela, sigo eu.

Já em casa, no sofá com o folheto nas mãos releio: “Dramatic views”. Devaneio. Feliz aquele que mantêm a capacidade de olhar dramaticamente para a beleza da vida.

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