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  • Débora de Mello

As consequências da alienação na vida e na sociedade, por Václav Havel.


Citizen Havel, the movie.

Václav Havel afirmou que a cultura do consumismo e o totalitarismo são a mesma coisa, ordens que aprisionam a vida humana. Portanto, os brasileiros podem aprender com os checos. O dramaturgo, filósofo, ensaísta, ativista, político, economista e o primeiro presidente da atual Republica Checa, foi ainda mais longe, concluiu que cada governo é o espelho da alma de seu povo. Sendo assim, o brasileiro que se embravece ao olhar para o terrível momento do governo pode se dar conta de muito de sua própria natureza. Dói, mas quanto antes estiver consciente, melhor.

Em seu famoso ensaio The Power of the Powerless (1978), destrincha detalhe por detalhe os elementos que tornam uma existência aprisionada sob o exercício de vigilância estabelecido por um poder mórbido e opressor. Havel não fala apenas do governo, mas do cidadão e de uma instância psíquica secreta, um poder imaginário corrompendo a possibilidade do gesto espontâneo na vida do cidadão; gesto espontâneo é expressão muito cara aos psicanalistas. Václav Havel foi da alienação à lucidez observando homens e mulheres e suas escancaradas contradições. The Power of the Powerless serviu de embasamento teórico e de inspiração na medida para as revoltas que se seguiriam contra o governo da Checoslováquia. O ensaio de Havel é uma análise psicanalítica, sem usar termos da psicanálise, sobre mecanismos opressores inconscientes por detrás daquilo que a aparência apresenta como o contrário, o oprimido. Assim, ele expôs o totalitarismo escondido no coração dos oprimidos cidadãos.

Eu estava em Praga quando Václav Havel morreu. Estávamos eu e meus dois filhos, de férias, e, portanto, sem obsessões pelas notícias diárias que a rotina nos impõe. Assim foi que tropeçamos num vasto tapete de flores, em frente ao Opera House, meu lugar preferido. Na fachada uma enorme bandeira estampando o simpático rosto e o sorriso de Václav Havel. Evidente, seguimos a multidão e nos despedimos do pequeno deus, junto aos nativos. Na época, ele era para mim um importante político e presidente, não conhecia sua importância como líder, artista e ativista que derrotou o opressor bloco comunista. Foi ele quem elaborou e assinou o acordo que desvinculou a República Checa da antiga Checoslováquia. Feito dessa grandeza não deixa de fora a violência física e mortes, lamentável. No entanto, essas não foram as principais armas do pacífico e sorridente Václav Havel. A escrita artística, sincera e delatora, a fala poética e a fé nas artes e na música foram os mísseis com que Havel bombardeou. Ele era manso e denso, provavelmente, o presidente mais amado da história do mundo. Não era para menos com tantas habilidades e discernimento sobre a vida privada e social dos seres humanos. Como presidente valorizou a arte como pilar necessário na formação de qualquer indivíduo, membro de uma comunidade, que deseja paz; o resultado é o alto índice de desenvolvimento que goza atualmente o povo daquele país.

Václav Havel ninou seu povo com rock, o animado presidente comemorou a marcha de saída do exército soviético de sua nova nação com concertos de rock ao invés da tradicional marcha militar. Frank Zappa e Paul Simon deixaram sua marca na história por causa de um presidente que amava e se inspirava na arte. Conta a mídia que Václav teria dito a Lou Reed: “Você sabe que eu sou presidente por sua causa? ”

Seu segredo, o autor bíblico revelou a milhares de anos atrás, as palavras. Ao ser laureado em 1989, com o prêmio da paz pela German Booksellers Association, em Frankfurt, Václav Havel iniciou seu discurso citando a Bíblia, João 1:1 “no início era a palavra”, o que parece significar que a palavra de deus seria a fonte de toda a criação. O mesmo, disse Václav, pode ser aplicado ao homem. Cavando mais longe, continua ele, “a palavra pode ser a fonte de nossa existência, a substância precisa da forma de vida cósmica que chamamos de homem”. E assim foi que a letras marcharam pelas ruas de Praga, e alcançaram o poder da mudança e o fim da opressão.

Pelas palavras também os pacientes se curam. Libertam-se das algemas imaginárias e opressoras, transformando a imaginação de inimiga em aliada fonte não apenas da obra artística, mas de uma vida extremamente criativa. Václav Havel sabia muito bem o que dizia, conhecia a força que forja o caráter, tendo ele mesmo, sido letrado – por conta própria, nos escritos clássicos. A falta de raízes na história da humanidade é um dos motivos apontados pelo dramaturgo que explicaria a alienação.

Havel sofreu na carne os efeitos da privação, filho de intelectuais e influentes na Checoslováquia poderia ter tido a educação que desejou, no entanto por razões políticas a carreira de humanas, seu sonho, lhe foi negada. Václav Havel, sem saída submeteu-se ao curso que os pais e o governo lhe impuseram, a rebeldia e transgressão ficaram guardadas para momento mais apropriado, romper com a tradição exige delicadeza. O jovem Václav soube o momento certo de resistir e combater. Sua vivência de proteção e privação, submissão e transgressão lhe possibilitou compreender a ambiguidade presente nas palavras e na natureza humana. Assim como um psicanalista faz e ensina seu paciente a fazer, isto é, colocar qualquer palavra e atitude debaixo de rigorosa observação, Havel intuitivamente resguardou sua faculdade psíquica.

Corajosamente expôs seus próprios colegas que não tiveram a mesma sorte e acabaram por ceder às regras dos comunistas, escreveu:

Eu menciono isso apenas para demonstrar novamente, de outro ângulo, quão fácil é para uma causa bem-intencionada trair suas próprias boas intenções - e mais uma vez por causa de uma palavra cujo significado parece não ter recebido uma adequada observação.

Descreveu quão sutil a ambivalência da natureza humana age como escorpião, se não for observada, descreveu:

... acontece discretamente, tranquilamente, por sigilo - e quando finalmente se percebe, resta-se apenas uma opção para você; assombro tardio ... esse é precisamente o caminho demoníaco que as palavras são capazes para nos trair - a menos que estejamos constantemente circunspectos sobre o uso delas.

Havel nos adverte, recordem Cassandra, a figura mitológica, e não sejam como o rei de Troia, onde as consequências da negligência às palavras e ao mundo não material, psíquico, penetram profundamente no mundo, que é bem material, estragando as possibilidades de usufruir a vida. Doenças, dívidas, falta de dinheiro, falta de trabalho, empregos opressivos, relacionamentos afetivos atribulados, solidão, são provas de corações e mentes sob constantes tempestades. Enfim, vale a pena escutar a Havel, que por sua vez escutou a Publius Terentius (170 a.c.): Homo sum, human nihil me alienum puto. (Eu sou homem, não considero nada que é humano estranho a mim), e levar adiante, numa corrente humana com raízes e ramos, a única possibilidade de evolução pacífica, a respeitosa e cautelosa consciência do inconsciente, inacessível. O estranho em nós.

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