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  • Débora de Mello

Comprar, comprar, comprar. Uma explosão na economia afetiva.


Leake Street Graffiti Tunnel, 2009

Anterior ao estouro orçamentário familiar e pessoal, há um estouro afetivo; desconhecido ou inconsciente. Tal desequilíbrio rola e cresce em problemas e angústias como uma bola de neve, não percebida até que seja tarde demais. Se as compras estiverem no topo da lista de suas prioridades, ou se depois das compras você se sente desanimado, preocupado, culpado; se sofre com intestino preso, dores de cabeça, irritações, é bom que o leitor se estranhe, e se indague a respeito dessa leve intuição que lhe acusa de certo exagero na qualidade ou na quantidade. Vista grossa para o consumo pode ser uma cara negligência.

Às vezes, as dores são no bolso. Dívidas doem. Roupas que não saem da sacola, nas cadeiras dos quartos, ou escondidas no armário, também doem. A necessidade de marcas cada vez mais caras e luxuosas. Não temos mais guarda-roupas, temos closets. Quartos para guardar, para acumular.

Apesar de reclamarmos da baixa qualidade dos produtos modernos comparados com os antigos, não paramos para pensar. É evidente que fabricantes, e consumidores não prezam mais pela duração dos produtos, mas antes, pela novidade da estação e com as surpresas dos novos lançamentos. China e o amontoado de obscuras questões sobre sua mão-de-obra, parecem não existir no ato de comprar aquilo que promete lhe tornar a Cinderela ou o super-homem. O auto engano também é promovido disfarçadamente sob os conceitos de produtos verdes, raros e especiais. Comprar livros, música e viagens é também consumir tanto quanto roupas e sapatos.

Claro que melhor é consumir do que guerrear, e um mundo sem consumo é um mundo com mais guerras. Sim, as raízes da guerra e do consumo compulsivo são as mesmas. E que fonte é essa? Há debates e polêmica ao definir as cargas energéticas da vida e da mente, não me refiro ao misticismo, mas a disponibilidade para a vida. Nas disciplinas do pensamento, energia é usado como sinônimo de afeto. Afetar e ser afetado. Pulso elétrico deslizando entre ideias e músculos.

A psicanálise pode ajudar a desembaraçar os cachos dos pensamentos, Freud em toda sua vida clínica e teórica reconheceu duas qualidades de afeto. As populares Pulsão de Vida e Pulsão de Morte. O ser humano parece ter disposição para vida, vontades barulhentas e construtivas, quer construir casa, decorar, passear, estudar, casar, separar, ter filhos, ficar bonito, e por assim vai. Porém se a vida tivesse apenas essa inclinação tornar-se-ia confusa, acelerada, repleta de estímulos atraentes e sem dúvida, caótica. Um exemplo disso é um consumidor compulsivo e um cartão de crédito golden, black, prata, diamond, e etc.

Talvez, em determinada época evolutiva, aquilo a que chamamos de Pulsão de Vida, por ainda não sabemos o que é, parece ter sido exclusivamente energia sexual, uma força que carrega todo ser vivo a se reproduzir. Já no ser humano sexualidade é sempre psicosexualidade, ou libido. A diferença entre sexualidade e psicosexualidade se deve ao fato de que o humano é a única espécie que precisa de representações, portanto “psico”. O ser humano precisa que uma coisa represente outra coisa. Por exemplo, o menu de um restaurante representa vários pratos, os alimentos não estão ali, de fato, no menu, mas são representados por palavras escritas no menu. Por isso, dizemos que o homem é um ser simbólico. Que usa e precisa de símbolos, logo não existe no ser humano o simples ato reprodutivo, e sim o ato e o símbolo do ato, o que chamamos de psicosexualidade. Em oposição a Pulsão de Vida, está a Pulsão de Morte, uma inclinação para: “ficar parado”, “como está fica”, “não se mexa”. Trata-se de uma força voltada para conservação que em oposição ao barulho da vida, traz uma boa dose de quietude, de desaceleração, crucial para ordenar, organizar, curtir e cultivar o que quer que seja. As duas em conjunto evitam que a vida se torne caótica. O resultado podemos chamar de harmonia, como na teoria dos sons, na música.

Pulsão de Morte não tem nada a ver com o desejo de morrer, mas sim com a necessidade de ficar parado e quieto, de conservar. Enquanto a Pulsão de Vida é barulhenta, a Pulsão de Morte é silenciosa. No entanto, o que acontece é que diante da ameaça de caos a Pulsão de Morte, ou um movimento para paralisar, pode aprisionar a vida em atividades mal simbolizadas, lançar a pessoa em círculos repetitivos ad eternum, daí a compulsão por qualquer coisa. E obrigação por comprar é a mais sedutora atualmente. Conhecer e reconhecer em si essas duas motivações pode contrapesar sua economia afetiva e financeira.

Comprar na modernidade está mal simbolizado, parece estar no lugar de Fazer, de conseguir. No lugar da sensação de respeito pelo seu trabalho e sua produção. Comprar é vivido como: “Eu posso”, “Eu fiz”.

Amamos as coisas e não há mal algum nisso. Não mais pernicioso é o dinheiro e sim sua falta. Ao colocarmos um colecionador e um consumidor compulsivo lado a lado, poderemos aprender muito sobre os prejuízos em consumir. Ambos compram muito, no entanto um está equilibrado e o outro não. Se nos imaginarmos perguntando a cada um deles onde está o prazer no ato de consumir encontraremos uma verdade desconfortável. Para um colecionador o prazer está no OBJETO. Cada objeto dentro da coleção importa. É um elo numa cadeia, é história. Para o consumidor o valor do objeto comprado é nenhum. Provavelmente, logo será encaminhado para a lata do lixo, ou para doação, ou para os brechós em moda. O prazer do consumidor compulsivo, leve, médio ou crônico, está em sua IMAGINAÇÃO, e a imaginação não tem limites, e ainda bem, mas não nesse caso. O objeto comprado transforma-se em uma varinha de condão transformando a realidade em conto de fada. Nada mal, de vez em quando embarcar numa espécie de refresco, afastamento da realidade. Entretanto, afastar-se da realidade, repetidas vezes, e por longos períodos pode enfraquecê-lo em enfrentar sua história, e aquilo na sua vida que precisa ser transformado. É imperioso discriminar e delinear as invasões da imaginação em seu dia-a-dia. Não é tarefa fácil.

A compulsão, domínio da Pulsão de Morte, impulso para conservar o remédio imaginado para a dor, às vezes real, e às vezes também imaginada, interrompe as narrativas, interrompe o enredo da vida e instaura a imaginação no comando da roda do leme. Nesse caso, a pulsão de Vida na tentativa de animar e religar o que foi interrompido acelera o comportamento. Esse desequilíbrio afetivo entra em circulação, repetindo-se. Infelizmente, ecoará até que possa ser elaborado, religado e incluído numa história de vida real, em seu trabalho, em suas relações humanas, podendo assim ser bem simbolizado e não apenas imaginado. O que fazer?

Comece por perguntar-se: no lugar de que coisa está essa outra coisa de comprar sem poder ou precisar? Que representa? Que função tem essa atitude estranha? Geralmente, este é o trabalho que uma boa e responsável análise pode lhe proporcionar. A literatura com seus infinitos personagens e perfis psicológicos auxiliam a compreensão do estranho mundo da sua imaginação, o tornando a cada leitura mais apto a diferenciá-la de sua vida real. Só assim você conseguira fugir das soluções mágicas. Dedique-se à satisfação genuína.

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