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  • Débora de Mello

Um conto de compaixão.


Enkidu e Gilgamesh, esculpidos em placa de cerâmica, por Neil Dalrymple

Pela manhã tenho um ritual o qual aprendi de uma canção, antes de acordarem os meus mais queridos, mesmo antes da cidade acordar, bem cedo, antes de eu mesma acordar, caminho até a encosta, lá me livro de restos e de pedaços de coisas que ficaram grudados no meu corpo. Imagino a mim mesma descartável, rolando despenhadeiro abaixo. Um dia serei. Um arrepio sobe pela espinha. Respiro. Pronto, agora entro forte na balada da vida, aferindo se os únicos órgãos que me dão sentido, os do sentido, continuam a ser sentidos. Assim, viva, o mundo encolhe e tenho à mão tudo que é distante, no espaço e no tempo.

Os ouvidos captam a antiga música no moderno aparelho de som, Dvorak, The Golden Wheel, o texto ainda fechado e preso por uma das mãos é a escrita mais antiga que se conhece, o mito do Rei Gilgamesh. O aroma e nos lábios, o café. A ponta dos dedos desliza, como bailarina no gelo, pela superfície lisa e macia do telefone. Os olhos percorrem as notícias no Twitter, uma atrás d’outra, esperando tediosas como as intermináveis filas que se aglomeram nas portas das repartições públicas. Tudo igual. A ventania, ainda indecisa, causa estrago aqui e acolá, embaraça os fios de cabelo e os pensamentos. Já era esperado, embora sempre esquecido. O frio sobe pela espinha. Respiro. É preciso aguardar, os ventos sempre mudam de direção.

Que interessante! Sempre mais notícias da corte do que da plebe, provavelmente é o que deve fazer mais sucesso. E assim, a compaixão se atrasa. Empolgam-se ao falar do Mercado, celebridade favorita, apesar de temperamental. A imaginação aproxima o futuro, então penso, já passei dos quarenta, e sei que não posso contar com previdência. Cuidado com a crise, a inflação, os juros. E a Coreia do Norte! E a Rússia! Um arrepio sobe pela espinha. Respiro. A memória olha para aquele baú fechado, o bolor exala medo. Então penso, devo comprar mais enlatados e deixar nas prateleiras, nunca se sabe. Um galão de água pelos menos. Talvez, fugir para os montes, e acatar o conselho do antigo escrito bíblico. Fazer como o herói do filme e ter no colchão barras de ouro, ao invés de cash, se pegar fogo pode ajudar, estarei garantida.

O pensamento vira fumaça e os dedos patinam, e agora os olhos se acalmam com as imagens do Instagram e Facebook. Parece bom receber notícias de que a vida vai bem e bela no reino das águas claras.

Os amigos e conhecidos perambulando por lugares lindos, produzindo todo tipo de coisa colorida e gostosa. Abraços, beijos e aconchego entre casais, pais e filhos, amigos, até gente da mesma firma. Alguns cada vez mais apaixonados por si mesmos postam todo tipo de caras e bocas. Outros são mais apaixonados por outras coisas. Todo tipo de coisas.

O pensamento voa de novo, a diferença entre os dias de hoje e os dias de ontem, é que ontem era tudo mais difícil e mais trabalhoso. Mesmo os reis sofriam com dores de dente e as rainhas ficavam enrugadas, se não morressem antes. Hoje não mais. Embora, as camponesas ainda tenham rugas, e os mendigos arranquem seus dentes em todas as épocas. A compaixão está sempre atrasada.

Deixo na mesa o fone. E as duas mãos abrem o livro, e os olhos mergulham lá no fundo lá trás. Entre as letras e a imaginação.

Gilgamesh era um rei poderoso, feito com três partes de deus e uma de homem. Construiu sua cidade e seu império. Tinha tudo e era um fanfarrão, feliz se divertia. Mas não conhecia a intimidade de uma amizade. Afortunado, os deuses lhe mandaram, então, um amigo, e com esse amigo ele viveu aventuras, e a vida de fanfarrão ficou pequena diante dos dias ao lado de Enkidu, seu único amigo. Vitoriosos em suas jornadas, voltaram para a casa. Desafortunado, Enkidu morre.

Gilgamesh nunca mais será o mesmo, inconsolável, desesperado, vai em busca daquilo que imaginou ser a fonte de alívio para sua ferida. Não conto o que era porque não importa, pois, na vida de verdade cada um imagina uma coisa, que curiosamente é, geralmente, a mesma coisa. Opa, eu também pensava a pouco nessas coisas. Volto a ler, e apesar de trágico, o mito tem um final feliz, mas nem tanto, assim como na vida.

Gilgamesh é um azarado sortudo e consegue o que queria, mas não aquilo que imaginou, consegue outra coisa. Uma coisa que não é coisa, é sensação. Todos podem ter, embora dê trabalho cultivar, e hoje em dia, poucos são afeitos a ideia de trabalhoso. Para Gilgamesh aconteceu enquanto ele buscava aquela outra coisa, e foi ainda mais trabalhoso do que poderia ter sido, demorou muito. Pena, ele logo morreu, mas quem o observava escreveu sua saga, na esperança de que todas as pessoas iriam ler, e quem sabe, pela leitura, os próximos encontrem mais cedo aquilo que os de antes demoraram a encontrar e, portanto, tenham mais tempo para usufruir. Quem sabe não deixem a ferida que a ferrugem causou envenenar a vida. Mas, poucos são os que querem tocar e cheirar, também não gostam de escutar, com a vista embaçada tudo demora a fazer sentido, as coisas vão ficando confusas, e a compaixão se atrasa novamente; chega tarde demais, só depois que o Império cair, assim pelo menos, foi antes.

Do futuro ninguém sabe.

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