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  • Débora de Mello

Reis e Presidentes, coroas ocas. Shakespeare de olho na democracia.


As séries de TV House of Cards e Games of Thrones explicitamente inspiradas no Bardo e Bring Down the House -uma montagem atual, da Trilogia Henrique VI de Willian Shakespeare, com elenco só de mulheres, adaptada por Rosa Joshi e Kate Wisniewski para a Cia Shakespeare de Seattle, WA, em cartaz durante o último mês de março (2017) conduziram-me a um exame melhor sobre a saga Yorks vs. Lancasters contada por Shakespeare, a leitura dos antigos textos datados do fim do século XVI e início do XVII, mais uma vez, iluminou a cena atual. Tudo igual como era antes. Mas, York e Lancaster não foram as únicas casas a desmoronarem, minha crença no governos atuais como democracia também veio abaixo.

Olhando do mais avançado mirante do futuro, a mim pelo menos não me causaria surpresa descobrir que estamos metidos até as orelhas na era medieval. (C.G. Jung)

O período de trinta anos de batalhas sangrentas pelo trono da Inglaterra ficou conhecido como Wars of Roses. O leitor provavelmente sabe, mas não me custa repetir, Guerra das Rosas, porque cada uma das casas York e Lancaster tinham como símbolo uma rosa. Vermelha para os Lancasters, branca os Yorks. Lancaster e York eram parentes, gente da mesma família, descendentes do vovô Edward III (1312-1377).

É preciso relembrar que rei é deus na terra, junto com o papa. De verdade, essa é a ilusão, assim como acreditamos que nossos presidentes são do povo, para o povo e pelo povo. Como toda ilusão, atrás das cortinas estão os de carne e ossos, e as verdades invariantes de nossa espécie. E, assim como acontecia entre os deuses gregos, a história se repetiu no endeusado trono da idade média, e se repete em Brasília, em Washington DC, em Paris, e etc.; de acordo com o espírito dos tempos. Haviam traições entre mancomunados, filhos bastardos para todo lado, mulheres sem direitos, e o dinheiro e o luxo preenchendo os ocos da ilusão.

Tenho a impressão que a medicina atrapalha as monarquias restantes no Ocidente. Há muita saúde na monarquia hoje, difícil alguém morrer e abrir espaço para o próximo na linhagem. Ser descendente da família real hoje em dia só significa vida financeira bem fácil, e nada mais. Porém, nos tempos medievais muita gente morria novo, o que facilitava o deslizamento do poder pelos braços das famílias, e sua cobiça.

Tanto sangue nas peças de Shakespeare, e na série Games of Thrones, só pode apontar para uma morbidade escondida na ideia púrpura de nobreza e família.

Nobreza parece ser uma ideia sangrenta e destrutiva desde que perdeu sua conexão com a antiga crença dos alquimistas sobre a origem dos reis e rainhas. A ideia oca da nobreza, e sua crença na sua superioridade sobre outros seres humanos vem, desde há muito tempo, intoxicando dentro de muitas famílias, as sementes do genuíno laço de confiança, único capaz de interromper a violência inata do ser humano contra seu vizinho. E direcioná-la para alvos mais favoráveis à vida.

Cavando um pouco mais, notamos que Shakespeare contrasta a oca subserviência da nobreza com o cristianismo, uma vez que um não existe sem o outro, já que o rei era ungido pelo Cristo, e por sua vez, o rei designava o nobre. Shakespeare descreve detalhadamente nas oito peças dedicadas a dinastia Plantagenet, partindo da deposição de Richard II até a morte do torto mais famoso da história, Richard III, a perfídia desses humanos perigosos e mascarados, de unção e eleição, contra os alucinados súditos e eleitores. É aqui que as distantes épocas se amarram pelo mesmo furo que são alinhavadas, como páginas de um mesmo livro.

Não sei se o leitor está familiarizado com o que vem a ser Gerrymandering nos Estados Unidos, nação que é tomada como símbolo internacional da democracia. Gerrymadering, é a manipulação territorial do eleitorado concedendo vantagem a um dos partidos, praticada há mais de duzentos anos, nos bastidores do teatro da democracia americana. Portanto, a escolha do corpo governante não é democrático, e seus participantes tão pouco se interessam pelas necessidades e aspirações de seu povo

No Brasil, a situação não é menos mentirosa, tratados sobre a falsa democracia brasileira vêm sendo divulgados nos últimos dois anos para qualquer bom e corajoso entendedor em todos os tipos de mídia. Políticos brasileiros são pau-mandados, e bem pagos, de empresários selvagens. Todos vestidos de nobreza e elite oca, seja intelectual, econômica ou artística.

Algo curioso me parece que acontece entre o povo brasileiro que hoje espera calado, ou batendo panelas, pelos políticos, apesar de já ter cantado em voz alta com Geraldo Vandré que quem sabe faz a hora e não espera acontecer. Não me refiro ao governo, me refiro ao cotidiano da vida medíocre, a da muitos, a nossa. É curioso perceber que em muitos países da Europa e nos Estados Unidos, apesar do governo ser qualquer coisa menos democracia, é possível ver a democracia - um governo entre o povo, pelas ruas do bairro, nas faixas de pedestres, nas escolas públicas. O povo se autogoverna em pequenas questões que fazem a grande diferença. Parece que ao respeitar a faixa de pedestre para atravessar uma rua, e aguardar o sinal de trânsito. Ao carregar seu próprio lixo para casa conservando os parques nacionais. Ao matricular crianças de diferentes classes sociais na mesma escola do bairro. Comércios sem vendedores, onde o comprador deixa por conta própria o valor daquilo que consumiu para o estabelecimento. Ao encherem os assentos das bibliotecas, casas de ópera, concertos e teatro, o povo mostra sua cara e seu coração; sua verdadeira ligação e devoção àquilo que chamamos humanidade. Enfim, quando o povo concorda em cumprir os acordos sociais, desacreditando que uma vantagem individual fará a vida melhor, me parece democracia, além de discernimento. Mais desejável que a vida insana e atormentada que os reis e nobres das peças de Shakespeare e os personagens de Games of Thrones e House of Cards e os políticos atuais encenam.

 

O ansiolítico do dia para a histeria coletiva pode ser uma reforma política. Mas só a informação e a transformação de pequenos hábitos diários trarão a cura desejada, uma mudança verdadeira nos valores da maioria dos indivíduos que compõe um povo, digo maioria, ou uma boa parte, mas não de todos os indivíduos, e certamente não nos governos que elegem presidentes exatamente com a mesma dinâmica que os reis de antigamente. Mas pequenas mudanças demandam grande trabalho, implica abrir mão de prazeres imediatos e alucinações de proteção em prol da lúcida satisfação que só a consciência poderá laureá-lo, meu colega.

(Shakespeare, W. Richard II, Henrique IV partes 1 e 2, Henrique V, Trilogia Henrique VI, Richard III)


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