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  • Débora de Mello

Manchester by-the-Sea, novos homens à vista!


O filme trata da opressão psíquica aparentemente irremediável de Lee Chandler, um jovem pai de família. Ele não consegue aceitar o acaso, a tragédia, a vida como ela é. Chandler é a vítima dos gigantes que o possuem. Como em filmes de terror cósmico mesmo, mas ainda pior, pois ele é possuído não por uma, mas por entidades em luta pela posse exclusiva de sua vida. Tendemos a banalizar o peso de uma situação desse tipo, de alma possuída, acostumando-nos a chamar de conflito aquilo que é teimosia de gigantes.

Amor-Dor e Amor-Prazer parecem possuir a alma do protagonista Lee. Ele vem tentando construir uma via alternativa, sua jornada pessoal; estar em um relacionamento como casamento, e também criar filhos exige uma dose considerável de disciplina, e disciplina é dor. Frustração é dor. Por outro lado, claro que há muito de divertido e prazeroso em ter uma companheira, também educar e acompanhar o desenvolvimento dos filhos. As cenas iniciais do filme mostram o boa praça Lee curtindo seus filhos, sua esposa, seu sobrinho, seu irmão, o barco e o mar. E curte também seus amigos, bebidas e drogas. Uma ode à vida, que em cenas subsequentes sucumbirá, mostrando sua outra face, a do ódio à vida. Lee, após perder seus filhos, não suporta estar consciente e vivo. A cena que se passa na delegacia onde Lee implora que os policiais o culpem e o julguem é exemplo do descompasso entre a vida como ela é, compartilhada socialmente e aquela que só Lee, e nós telespectadores podemos ver. Os policias são claros com Lee e, lhe asseguram que ele não teve responsabilidade sobre a tragédia que mitigou sua família; que o mesmo poderia ter acontecido em qualquer casa vizinha em

Manchester by-the-Sea, nome da cidade onde a trama se passa. Mas Lee não aceita as más obras do acaso, se algo aconteceu é porque ele deve ter pincelado. Lee, que de madrugada bebia a última latinha enquanto a esposa e os três filhos dormiam, saiu para buscar mais bebida, em sua ausência, uma caminhada de 40 minutos, a casa pega fogo, e somente sua esposa sobrevive. Rejeitando a verdade suprema que a vida continua sem se importar com acontecimentos de qualquer categoria, Lee se auto engana e se auto condena a uma rotina diária de mal-estar, como zelador de um prédio, contanto que tenha uma moderada noite de sono, após uma cerveja. Nada mal. O resultado: um homem amargo aparentemente livre. Livre para escolher quais latrinas desentupirá de merdas, com a condição que não seja sua própria.

Isso funciona bem até que seu sobrinho adolescente o traz de volta à realidade, como fazem os exorcistas na literatura do horror. E, Chandler terá de lutar e enfrentar a vida como ela é, o espólio de seus enganos, e auto-enganos, de tropeços e horrores, mas também de amor e humor, durante os dias que se desenrolam enquanto tenta se livrar da responsabilidade de criar seu sobrinho adolescente, após a morte de seu irmão, segundo o desejo atestado desse.

Entre o vai-e-vem, onde vai é ir, encarar a continuação da vida, com o que ela apresentar; e vem é ficar atracado na ilusória condenação que mais é redentora, Lee vai aos poucos se calejando e se fortalecendo.

Nervoso, Lee grita para o sobrinho: “Get in the car!”

O safo garoto lhe responde com a lógica de ferro dos adolescents:

“I can’t obey your orders until you unlock the door”

O sobrinho vai lhe dando pequenas boas lições de que é Lee mesmo que atravanca sua própria condição. Essa aparente divisão na personalidade deu e continua dando muito material para polêmica entre filósofos, psicólogos, psicanalistas, espiritualistas e afins. Termos como Ego, Superego, Self, Falso self, Id, Imaginário, Simbólico, Shadow, Arquétipos, espírito, demônios, por exemplo, denotam aquilo que é percebido como partes distintas da personalidade, possuindo força e intensidade autônomas, que levam a pessoa a agir contra sua própria vontade e irracionalmente. Ainda hoje, não podemos descrever com clareza o que são. Contudo, seus efeitos devastadores não deixam espaço para dúvidas de que algo além da consciência está no domínio. Os adventos sequenciais da teoria da relatividade, de Einstein, e da física quântica, e do princípio da incerteza de Heisenberg, que provaram que a luz se comporta de duas maneiras controversas, ora como ondas e como partículas, possibilitaram aos físicos análises e previsões cada vez mais precisas sobre o comportamento de partículas. Sobretudo, como a atenção dirigida pode alterar o comportamento e a existência mesmo de partículas; assim resolveram aplicar essas descobertas a respeito da luz sobre toda matéria, tudo que existe. Como humanos são matéria feita de partículas, logo psicólogos se encontraram com os físicos. Psicólogos já sabiam que uma relação altera formas, modifica comportamento, mas aproveitaram as descobertas da física para validarem e avançarem em suas pesquisas sobre o comportamento da vida humana.

Freud ao introduzir seu artigo a respeitos de dois princípios reguladores do funcionamento mental trouxe à psicanálise o objeto de estudo da física: o que é a realidade, e como se ater a ela. Disse ele e 1911:“Defrontamo-nos agora com a tarefa de investigar o desenvolvimento da relação dos neuróticos e da humanidade em geral com a realidade e, desta maneira, de trazer a significação psicológica do mundo externo e real para a estrutura de nossas teorias.”

Lee se afasta da realidade, da insuportável tragédia, por causa de tendências pré-existentes em sua personalidade. Por exemplo, a mãe dos filhos de Lee, sua ex-esposa, recupera-se da perda dos filhos, dos três filhos, casa-se e engravida de novo. Estando ela em estado psíquico diferente de Lee, ela consegue retomar o curso da vida.

O filme é demais interessante e levanta outra boa questão. Não é comum nas telas, na literatura, o sofrimento além da conta do homem pela perda de filhos. No caso de divórcios, ainda hoje, os pais são rápidos em abrir mão dos herdeiros. Na mitologia grega Cronos engoles seus filhos. Na mitologia cristã Abraão sacrifica seu filho. E ainda mais, o próprio deus entrega seu rebento, Jesus, à morte, negociando com esta a continuidade da humanidade. Parece que os homens estão também a encontrar um lugar menos distorcido e caricaturado nos dias atuais. Homens parecem não suportar mais suas vidas longe de seus filhos. A tarefa é pesada, muitas vezes tediosa, mas a recompensa é exclusiva daqueles que puderam assumir. É o que se percebe na cena final, apesar de tudo, Lee sorri ao ver seu sobrinho caminhar e namorar, e no sorriso esboça sua cara novamente, esperança ao horizonte, ingrediente indispensável para que ao longo de uma vida comum e sofrida sobrem momentos de felicidade.

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