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  • Débora de Mello

Mundo Interno?


O que é o mundo interno afinal? A inspiração para uma tentativa de resposta veio de minha recente experiência em Seattle, no MaCaw Hall, ao assistir a ópera La Traviata (1853), sob a batuta de Stefano Ranzani, dirigida pelo alemão Peter Konwitschny. Composta por Giuseppe Verdi, e libreto de Francisco Maria Piave.

Todas as primeiras impressões são fantásticas em Seattle, mas essa cidade pulsante não acredita que a primeira impressão é a que fica, toda a sequência de experiências é igualmente elaborada, e claro, aplaudidas pelo público. O Ópera House, McCaw Hall, é singular. Não é necessário dizer nada além de que após a reforma para sua reabertura em 1962, como Ópera House, Igor Stravinsky foi o regente convidado. No entanto para além do espetáculo, o design do arquiteto responsável, Mark Reddington, teve como mote a comunicação entre o edifício, a arte, e a comunidade, não apenas conceitualmente mas, literalmente o Ópera House está conectado tanto com outros teatros e praças da cidade, quanto com a comunidade; a extensa fachada de vidro permite que motoristas ou pedestres que estejam passando por ali deem uma expiada lá dentro, assim como os atendentes das récitas também podem observar a movimentação lá de fora. “Esse projeto de teatro oferece uma dramática e engajada experiência por seus espaços interiores e exteriores, e no modo como se apresenta a comunidade. Isso é algo que não existe em outro lugar do mundo”, disse seu criador, Reddington. Interior e exterior conectados, acho que foi aqui que nasceu a associação com o mundo interior e exterior de uma pessoa.

A palestra oferecida antes das apresentações tem um confortável auditório próprio, e a qualidade da apresentação acompanha o mesmo padrão. Recurso visual, conteúdo e palestrante avançados e bastante animados. O publico é contagiado pela nobreza expressa em cada gesto, e pela alta qualidade alcançada com tamanha dedicação à Arte. Seattle parece saber que trabalho árduo, consumo, diversão e modernidade precisam de educação, dos clássicos, das artes e de muita natureza. Aqui tem Google, Amazon, Ópera, Ballet, espaço dedicado a Shakespeare, e muito verde.

Muito mais que entretenimento assistir a uma respeitável releitura de La Traviata é uma oportunidade sagrada de testemunhar uma das grandes criações do homem, e esse já é um dos ingredientes que faz de uma récita de ópera uma vivencia terapêutica. Música, cena e texto se conjugam numa comunicação massiva com a audiência; sensação, emoção e intelecto são colocados em funcionamento. Essa é a finalidade das chamadas Belas Artes, atingir mente e coração, sentir e pensar ao mesmo tempo, considerando ambas equivalentes em importância, afim de obter entendimento amplo do que é ser humano no cosmos.

Existe uma particularidade em Verdi que lhe proporcionou compor música que fosse capaz de revelar a complexidade, a contradição e a lógica de suas personagens. Ele foi obcecado pelo teatro de Shakespeare, o qual é repleto de arquétipos, isto é, padrões de movimentos que se repetem e estão presentes em todo humano; Shakespeare um exímio e sensível observador da vida bem disse que a loucura tem método. O que nos instiga a tomar fôlego e encarar as tragédias, desde as gregas até as óperas com curiosidade de um Sherlock Holmes.

A influência de Shakespeare sobre Verdi o levou do bel canto ao verismo, o que isso significa? Que o desejo de Verdi era tornar a ópera ainda mais penetrante no psiquismo humano, que fosse mais reveladora para o espectador. Esse humano engajado queria que a audiência se identificasse com os personagens em diversas camadas de suas existências, e para isso construiu música que descrevesse uma personagem muito próxima da realidade social de sua época, e ainda assim capazes de cantar com tamanha técnica e beleza, como pedia a tradição. O resultado é um publico completamente seduzido, apesar de chocado. De fato, Verdi conseguiu expor conflitos, conscientes e inconscientes, inerentes ao ser humano e presente em todas as eras. Acreditava ele que o teatro de ópera deveria, a cada audiência, aproximar o ser humano de sua natureza, seu ambiente social e natural. Não se experimenta apenas catarse durante uma récita, mas se o espectador se interrogar poderá ir mais longe nos benefícios resultantes dessa experiência. Historia, politica, sociedade, são temas discutidos entre texto e música nesse potente drama musical baseado na obra de Alexandre Dumas, A Dama Das Camélias. O drama de uma mulher que recusou o caminho da convenção social, o casamento tradicional. Contudo, passado o afã da juventude sofre com os efeitos do conflito. Violeta adora a diversão e facilidade, mesmo doente continua a levar a vida de festa em festa, todas regadas com muita bebida e requinte, uma vida social intensa. Sim, ela vem vivendo sob o potente mecanismo de negação de sua realidade. Presa fácil dos olhares de admiração à sua magnifica pessoa, não resiste a paixão do poeta Alfredo, um nerd na versão do diretor Konwitschny, pessoa muito diferente do mundo em que vive Violeta. Alfredo é trazido por um conhecido de ambos à uma das festas oferecidas por Violeta. Alfredo mata a charada logo nos primeiros momentos da ópera e canta a Violeta que essa vida que ela leva irá matá-la. Ora, mudar de vida é algo muito trabalhoso, demorado e incerto, e La Traviata, - em italiano literalmente “tra” “via”, traduzidos: “entre” “caminho” – acredita que existe um atalho a ser pego. Uma vez que vendeu tempo de vida aos barões e feito fortuna com isso, deseja usufruir o que lhe resta num conto de fadas, - na cabecinha de Violeta, nada mais justo. De uma hora para outra deixa seu estilo de vida, deixa a “populosa Paris”, onde se sente “sozinha e abandonada” e foge para o campo com seu amado. Dura pouco, claro.

A realidade chega pela porta principal: o dinheiro. Quem está provendo aquele “sonho”? Alfredo acorda, e envergonhado sofre por não ter se dado conta de algo tão trivial, que as coisas não caem do céu. Alguém estava pagando por todas as contas caras, sim, porque o campo cheio de flores e o amor são sem dúvida acessíveis a todos, mas o conto de fadas custa muito dinheiro. Mas Violeta tem esse dinheiro e pode manter sua negação em funcionamento.

É então que algo muito interessante acontece na ópera, ela recebe a visita do pai de Alfredo, Sr. Germon, que pede a Violeta que abandone seu filho porque o relacionamento “errante” deles tem destruído a possibilidade de sua filha, a irmã de Alfredo, alcançar o lugar convencional, e nobre, de se casar com um bom pretendente. Violeta sofre, mas imediatamente aceita a proposição de Germon. Estranho!

Como ela mesma já antecipara em uma bela aria ao final do primeiro ato: “È strano! È strano! in core scolpiti ho quegli accenti!” Estranho, Estranho, no coração tenho esculpidas essas sílabas. Uma mulher liberal, que desafia as convenções sociais acaba por se comover justamente com aquilo que parece ter repelido por livre opção em sua própria vida? Desejaria ela o mal ou o bem de sua cunhada? Seria a liberação feminina o mal ou bem na vida de uma mulher?

Questões que dão muito em que pensar. Mas eu aqui olharei por um ângulo mais simples; no mundo em que vive Violeta, o estranho é o que se repete, o estranho é o convencional. O convencional para a maioria, amar e casar, para Violeta era o estranho e assim foi sua experiência no campo, passado algum tempo tão prontamente uma chance de retroceder aparece, tão rápido ele agarra a oportunidade. E aqui me lembro de Joseph Conrad: “se vive como se sonha, sozinho”. Construímos um mundo nosso, o afamado e clichê: mundo interno. Ou de acordo com convenções sociais, ou em desacordo, estamos condenados a tocar o mesmo filme a vida toda, a não ser que, e com a ajuda do teatro, possamos ver, sentir e pensar o imbróglio em que nos metemos, e claro, procurar um analista.

Sim, um bom analista seria útil, mas a tese dos gregos, onde tudo começou, seria utilizar o teatro; e desde a Renascença, o teatro de ópera em especial com sua força avassaladora advinda da junção de tantas artes, tem sido usado para levar o humano a perceber em seu dia-a-dia movimentos involuntários de forças que parecem ter vida própria e alheia. Jung disse algo assim, depois de ter alcançado com seus estudos tanto êxito como psiquiatra: não é minha razão que me move, antes sou movido pelos meus sonhos da mesma maneira que o homem primitivo. Freud cunhou uma nova ciência médica ao abordar e afirmar a dominância do inconsciente sobre as ações humanas. Assim como Shakespeare, Goethe, Schopenhauer, Kant, e muitos poetas já o haviam apontado em suas áreas.

Peter Konwitschny, declarou em entrevista ao McCaw Hall, Violeta, certamente, era a única humana da peça. Eu diria assim: Violeta era a única a ter pelo menos um dos olhos abertos, aquela que pôde assumir: Estranho!

Infelizmente não há atalhos na tarefa de mudar de vida. Um longo caminho, ano ou anos, de disciplina serão necessários para a conquista de uma vida plena e engajada com a história pessoal, história da humanidade, com a sociedade, trabalho, família e sonhos. Violeta recusou-se a trabalhar. Trabalhar para os seus sonhos. De festa em festa, a doença se agravou e ela sucumbiu, morreu.

Mas não sob a direção incrível de Konwitschny, que usou como cenário apenas um amontado de livros pertencentes a Alfredo, uma cadeira, que Violeta e Alfredo revezavam o uso, e uma cortina de teatro que Alfredo e Violeta abriam e fechavam num ato simbólico em vários momentos durante a apresentação.

Entre abrir e fechar, tentar e desistir, a personagem idealizada por esse mestre não morre no final, mas caminha. Algo morre, não sabemos o que. Ela se levanta, e estando as cortinas abertas, ela caminha de costas para o público. Em direção à escuridão? Ao fundo, ao inconsciente? Ao futuro?

Conhecer o estranho em si mesmo, é conhecer seu próprio mundo, o mundo interno, imaginação, padrões que se repetem compulsivamente, desejos, e daí poder tirar da vida o melhor que ela pode oferecer.


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